Um olhar interdisciplinar entre a neuroarquitetura e a psicologia



A partir do momento que se passa a olhar o ato projetual pelo viés da neuroarquitetura, o profissional precisa se abrir para as descobertas feitas em áreas que estudam o ser humano em primeiro plano, e desvendam sua forma de ler e interpretar o mundo. Isso porque a neuroarquitetura devolveu ao homem ao protagonismo das obras, e da apropriação dos espaços.

Convidei para uma conversa de alto nível a psicóloga, mestre em psicologia social e da personalidade, e doutora em filosofia, Marivania Bocca, e que trabalha com a psicologia existencialista sartriana, para amparar importantes conceitos que são levantados durante o ato projetual, e que contribuem para que aprimoremos a leitura que devemos fazer do público que vamos atender com nossos projetos em arquitetura e design.

Lorí Crízel – Como a psicologia fenomenológica-existencial sartriana explica as diferenças cognitivas dos cérebros masculino e feminino? E como ela entende o ser humano de maneira geral, independente do gênero?

Marivania Bocca – Essa questão é muito específica, de uma área também específica e bastante polêmica nas ciências. As áreas que de fato estudam os aspectos cerebrais anatomicamente e fisiologicamente falando são: a neurofisiologia e a neuroanatomia. Outras áreas, afins, como é o caso da psiconeurofisiologia também investem estudos acerca dessa temática. Porém, nossa abordagem de pesquisa e de atuação é outra. Não compreendemos a realidade humana a partir de questões biológicas, organicistas ou mentalistas. Quando falamos de psicologia e suas interfaces com a arquitetura o cerne da questão é tentar compreender as diferenças entre as pessoas (independente do sexo biológico ou de questões de gênero) por meio de suas histórias e de suas culturas, bem como a forma como cada uma se apropria ou não desse entorno socio-cultural que está inserida. Nossa compreensão é, portanto, analítica e sintética. Logo, uma compreensão que se fundamenta a partir da lente filosófica bem como da psicologia de inspiração sartriana. Com efeito, para que isso seja possível, utilizamos o “método progressivo-regressivo” de Jean-Paul Sartre (1960), como caminho de conhecimento dos acontecimentos da realidade humana. Assim, o método sartriano emprega, simultaneamente, o movimento regressivo e progressivo. Trata-se de um “vaivém” entre o abstrato e o concreto, entre o universal e o singular. É um método que objetiva a totalização, sempre tendo como pauta a compreensão da singularidade e da diferença. Portanto, podemos dizer que esse método de abordagem existencialista é um método regressivo-progressivo e analítico-sintético. É um método totalizador, pois a pessoa singular é tomada como totalidade. Uma pessoa deve ser compreendida sempre por inteiro. O método sartriano caracteriza-se por dois momentos distintos: 1) primeiramente, fazemos um movimento de ir até o passado – momento analítico e regressivo – para compreender e analisar as dimensões: antropológica, social e sociológica, da pessoa. Partimos da biografia singular para apreender o diferencial. Esse movimento nos possibilita conhecer aspectos culturais, hábitos e tradições, em outros termos, a história da pessoa, 2) em um segundo momento o movimento é responsável pela síntese, logo é sintético e progressivo – retornamos ao presente para entender o que a pessoa deseja para seu futuro. O que a pessoa faz e fará com sua própria história em direção ao seu projeto de ser. Se fizermos uma aproximação com a arquitetura, esse movimento de “vaivém” é fundamental para a construção de um bom briefing. Pois, só conhecendo seu cliente, é que o profissional irá sentir-se seguro para projetar – eliminando ou pelo menos minimizando o risco do cliente afirmar: “não me reconheço no projeto de minha casa, ou ainda, a minha casa ficou a “cara” do meu/minha arquiteto(a) e não a minha”. Quando isso ocorre, o profissional cuja ética não é apenas econômica deverá questionar-se: de que forma contribui para que meu cliente não se apropriasse do projeto (daquilo que foi projetado para ele)? Esse tipo de reflexão auxilia e muito na minimização de problemas relacionais tão comuns na área da arquitetura.

Lorí Crízel – Como a psicologia fenomenológica-existencial sartriana explica a forma como as pessoas se portam de acordo com o ambiente onde estão?

Marivania Bocca – As pessoas se relacionam com o mundo por meio de um processo dialético de interiorização do exterior e de exteriorização do interior. Logo, faz-se necessário que o arquiteto ao realizar o briefingo faça levando em consideração quem é(são) o(s) sujeito(s) para quem ele projeta. O profissional precisa compreender que seus clientes (os usuários de seus projetos) são pessoas singulares/universais, que estão situadas em um contexto: político, cultural, social, econômico muito específico, logo, cada uma dessas pessoas se relaciona com esse contexto de forma única. Na teoria sartriana, toda práxis (ação) humana ocorre nas e por meio das relações com outras pessoas e com a materialidade (objetos/utensílios que estão intimamente relacionados com as diferentes culturas). Toda pessoa nasce em um contexto de materialidade que está dado (imposto). Logo, a pessoa desde criança precisa agir com essa materialidade que lhe foi imposta. Os elementos dessa materialidade precedente ao sujeito acontecem conforme os fins para os quais foram criados, bem como a partir das necessidades da própria pessoa, assim a pessoa poderá ao confrontar-se em sua liberdade, escolher o que fará com a materialidade (imposta) em direção ao seu futuro – aceitando ou negando o que lhe foi predeterminado. É assim que uma pessoa escolherá a forma como vai lidar com o contexto sociomaterial em que está inserida. Podemos dizer ainda, que a condição de liberdade de uma pessoa faz com que ela escolha a cada momento o que será e o que fará no momento seguinte, logo, segundo a filosofia e a psicologia de verve sartriana, o ser humano é um projeto de ser em direção a um futuro.

Lorí Crízel – A psicologia conseguiu mapear como se dá o processo de despertar para o consumo nos seres humanos? Como se desperta esse desejo por consumir algo? Quais são os elementos que atuam no ser humano que o levam a sentir que precisa de algo?

Marivania Bocca – Vamos tentar abordar as três questões a partir da contextualização da noção de desejo pela lente da psicologia de inspiração sartriana. Falar de desejo, implica em falar de projeto de ser de uma pessoa. Melhor explicando. Toda pessoa fará uma escolha pautada em seu desejo que aqui entendemos como falta, bem como pela sua necessidade de eleição do objeto desejado. Assim, podemos dizer que a pessoa, por meio de seu desejo (falta), terá a necessidade de fazer escolhas, a todo momento, de algo que possa preenchê-la no momento seguinte. A pessoa se lança ao futuro como um projeto, vislumbrando com o que deseja. Logo, atua no mundo diante da materialidade dada. O que motiva uma pessoa não é o objeto/utensílio em si que está no mundo, mas a necessidade de livrar-se do estado de angústia oriundo da liberdade e da negatividade de ser, uma vez que a cada momento escolhemos o que seremos no momento seguinte. O que uma pessoa vai procurar no mundo, enquanto coisa a ser (per)seguida, será o que poderá aliviá-la, momentaneamente, de sua angústia existencial. Preenchendo temporariamente sua condição nadificante como existente. Ao identificar no mundo o objeto/utensílio que pode preenchê-la em seu vazio existencial proporcionando alívio imediato, a pessoa com isso, experimenta-se sendo aquela que tem/possui por exemplo uma casa. Assim, podemos dizer que é da própria pessoa que vem a necessidade (falta/motivo) e é ela quem elege/escolhe o que mais pode lhe ser prazeroso (objeto/utensílio) para preencher temporariamente seu vazio existencial. Porém, muitas vezes o objeto acaba sendo escolhido por uma outra pessoa, por exemplo, o arquiteto. Tal escolha muitas vezes é feita de tal forma que a pessoa (cliente/usuário) não reflita sobre a real necessidade ou desejo de ter esse objeto/utensílio escolhido pelo outro (nesse caso o arquiteto). A pessoa (cliente) acaba escolhendo de forma alienada, o que escolheram por e para ela. Quando um arquiteto, por exemplo, tenta “adivinhar” o que é melhor para o seu cliente pode dar certo quando este último se identifica com aquilo que lhe é oferecido. Muitas vezes isso ocorre sem nenhum tipo de reflexão por parte do cliente/usuário, que o faz, como forma de minimizar a própria angústia diante das inúmeras opções apresentadas. Logo, para não entrar em contato com a angústia inerente a condição humana de liberdade, a pessoa escolhe não escolher – pede para que outro faça por ela. Vejamos um exemplo clássico de cliente em relação ao arquiteto ou designer – não raro o cliente opta por não escolher e acaba atribuindo ao outro (nesse caso o profissional da arquitetura ou do design) o poder de sua escolha, como forma de minimizar sua angústia diante da liberdade e responsabilidade: “e se fosse para você qual escolheria”. Ao permitir que outra pessoa faça a escolha em ‘meu’ lugar passo a acreditar (autoengano) que ficarei isento da necessidade de me responsabilizar pela condição humana de liberdade. Eis aqui a manifestação daquilo que Sartre chama de má-fé. Por isso, cabe ao profissional da arquitetura ou do design capacitar, no sentido de instrumentalizar seu cliente por meio de conhecimento (dando uma espécie de aulinha) acerca dos conceitos, funções, estética sobre os materiais, sobre as cores, tendências, modismo, do efêmero ao duradouro. Só munido de conhecimento é que o cliente poderá sentir-se seguro para fazer a (sua) escolha. E isso só é possível se a relação estabelecida entre profissional e cliente for autêntica.

Lorí Crízel – Quando a psicologia estuda o comportamento humano, o fator ambiental exerce forte influência? Por exemplo: a leitura dos espaços onde o homem se encontra podem levá-lo ao desejo de consumo?

Marivania Bocca – Sendo o ser humano um sujeito singular e ao mesmo tempo universal oriundo de mediações com outras pessoas e com o mundo material, logo, deve ser compreendido como um sujeito sócio-histórico e dialético. Em constate movimento o ser humano constitui-se por meio de suas práxis com o mundo, composto por outras pessoas e pela materialidade. Quanto ao consumo, estamos inseridos em um contexto capitalista, logo, a lógica é de produção e lucro. Portanto, é fato a negatividade humana, e a positividade do objeto da coisa em si, do utensílio. Sempre haverá no mundo, uma positividade como coisa/objeto, que simplesmente é, e por ser alguma coisa, pode minimizar, ou até mesmo preencher temporariamente o vazio existencial, a condição humana em sua negatividade. Então quanto mais objetos/utensílios disponíveis no mundo, mais possibilidade a pessoa terá para eleger aquilo que pode temporariamente preenchê-la. A lógica do consumo é: diante do vazio (negatividade) humano, cria-se espaços (lojas, vitrines, sites e outros), cuja função é deixar a mostra a positividade (objeto/utensílio, a coisa em-si que é em sua essência positividade) – oferecendo inúmeras opções para as quais o ser humano poderá minimizar sua negatividade. Estes espaços precisam atingir de forma funcional e estética, o âmago da existência humana, sua falta. Logo, a ‘vitrine’, a ‘loja’ ou o ‘site de vendas’ tem algo em si para que o cliente possa eleger entre as várias opções aquela que mais se adequa as suas necessidades e desejo.

Lorí Crízel – Como a psicologia explica um fenômeno batizado de doll(boneca), característico da personalidade feminina e muito utilizado na arquitetura comercial para criar a sensação de dúvida na hora de se fazer escolhas? Quando desde a infância a mulher é induzida a sentir culpa por ter que fazer certas escolhas?

Marivania Bocca – Desconheço a teoria dollpara poder emitir qualquer posicionamento a partir dela. O que posso dizer de forma muito resumida acerca de mulheres e homens que optam por não manifestarem suas opiniões, seus desejos e necessidades em relação as suas escolhas (por exemplo, de materiais que envolvem o projeto arquitetônico ou de interiores) pode ser pensada como movimento de má-fé, como visto acima em outra questão. No que tange mais especificamente ao gênero feminino, não podemos deixar de trazer questões históricas de que a mulher durante muito tempo não teve “voz” tampouco “vez” para afirmar-se em suas escolhas. Para tanto, precisaríamos para melhor reflexão nos estender até o domínio histórico dos movimentos sociais (sufragistas, feministas e outros) que lutaram para minimizar a desigualdade entre homens e mulheres. Caso tivéssemos condições de ampliar essa nossa reflexão, teríamos que contextualizar as diferentes culturas que ainda se fazem pelo domínio machista.

Sobre Marivania Cristina Bocca:
Marivania Cristina Bocca é Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela PUC/RS. Especialista em Psicologia Fenomenológico-Existencial pela UNIPAR/Umuarama/PR. Especialização em Psicologia Existencialista Sartriana pela UNISUL/Florianópolis/SC. Doutora em Filosofia pela UNIOESTE/Toledo/PR. Doutorado sanduíche pela UBI – Covilhã/Portugal.





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