Normas sobre infraestruturas de saúde: ensinamentos durante a pandemia da covid-19



Por Thiago Mendonça de Souza Almeida

O mundo continua a vivenciar o cenário imposto pela pandemia da COVID-19 com momentos distintos de enfrentamento, uma vez que o “ponto zero” de contaminação aconteceu e continua a acontecer em momentos diferentes nos diversos quadrantes do planeta. Esse cenário se repete no Brasil devido a sua extensão territorial continental, assim como a implementação de várias estratégias pelas gestões de saúde para o seu enfrentamento. Dentre essas, destacam-se algumas como as direcionadas a infraestrutura de saúde, essas relacionadas à normativas, fluxos assistenciais ou as soluções de adequações de rápida implantação de Estabelecimentos Assistenciais de Saúde – EAS, visando mitigar problemas num sistema de saúde já comprimido na rotina. O momento ainda persiste, mas já cabe um olhar sistêmico do pós-pandemia em relação ao que pode e ao que se deve melhorar com os ensinamentos vivenciados nesse cenário, inclusive sobre as normatizações relacionadas à infraestrutura de saúde no país.

O Ministério da Saúde declarou, por meio da Portaria GM/MS nº 188, de 3 de fevereiro de2020, Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (SARS-CoV-2). Desde então o que se vê é o aumento exponencial de casos ocorrendo de maneira heterogênea pelo país.
Várias estratégias vêm sendo adotadas pelas três esferas governamentais, e também por outros atores da sociedade, para mitigar os efeitos da pandemia. Pode-se afirmar que as ações relacionadas à reestruturação e ampliação da infraestrutura de saúde no país estão elencadas dentre as mais importantes nesse momento. Dar a mínima condição ao palco para que os verdadeiros atores da saúde – médicos, enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas e demais profissionais e trabalhadores do setor possam atuar, é o mínimo esperado para proporcionar a segurança ao paciente. Porém, não é uma tarefa fácil quando o palco já se encontra em condições deploráveis, e é isso que o atual cenário “escancarou”. O sistema de saúde, principalmente o público, vive na rotina uma eterna contingência, e hoje vive uma “contingência dentro da contingência”. Dentre as várias estratégias adotadas em relação ao tema, algumas merecem destaque.
A internação se constituiu como uma das unidades funcionais hospitalares mais importantes no enfrentamento à pandemia. Assim ocorreu a necessidade de ampliação de leitos na rede de assistência à saúde, cujo reflexo foi uma disseminação de unidades itinerantes temporárias denominadas como “hospitais de campanha”, que possuem o seu programa voltado para “parte” do hospital, sendo essa parte justamente a internação. Vale ressaltar que essa unidade funcional, a internação, na rotina nunca funcionou de maneira autônoma, devido à relação direta com outros setores hospitalares. Porém devido à multiplicação dessas unidades pelo mundo, no final de março de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou um manual de orientação referente ao tema, o Severe Acute Respiratory Infections Treatment Centre, disponibilizado no seguinte endereço eletrônico: https://www.who.int/publications-detail/severe-acute-respiratory-infections-treatment-centre.

 

Figura 1 – Manual de orientação – Centro de tratamento SARG. Fonte: OMS

No Brasil, tais unidades de campanha foram admitidas a funcionar de maneira autônoma e temporária (enquanto durar o cenário da pandemia), inclusive sendo cadastradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) do Ministério da Saúde. As gestões do Sistema Único de Saúde – SUS devem seguir critérios de infraestrutura, citados por Nota Técnica (NT nº 141/2020) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), e obedecendo também a Portaria específica do Ministério da Saúde (PT GM MS nº 1.514/2020), essa definindo critérios com uma visão sistêmica da implantação de tais unidades na rede de assistência à saúde e direcionando para um manual de orientação de implantação de tais unidades, disponível em: https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/July/06/APRESENTA—-O-HOSPITAIS-CAMPANHA-MS.pdf

 

 


Figura 2 – Fluxo sugerido na rede (hospitais de campanha). Fonte: Ministério da Saúde

Apesar dos esforços institucionais do Governo Federal em normatizar tal possibilidade, o observado foi o lançamento dessa estratégia por parte das gestões de saúde em momentos inoportunos.
O que se constatou em muitos casos foi que tais unidades não conseguiram cumprir com a função de ser uma estratégia complementar na oferta de leitos na rede, se tornando concorrentes com as demais unidades já existentes e permanentes, em relação aos insumos, equipamentos e equipe profissionais. Uma vez que tais unidades possuem valores altos de implantação, resolutividade com limitação técnica assistencial e caráter temporário que não deixa legado na rede de assistência a saúde, o ideal é priorizar investimentos e adequações na estrutura existente.
A necessidade de implantar unidades com rápida instalação comprovou o óbvio: a norma sanitária vigente no país, a RDC nº 50/2002 ANVISA não contempla no seu texto uma citação com estrutura metodológica que englobe tais unidades itinerantes (daí a necessidade de ser lançada Nota Técnica de orientação citada anteriormente), muito menos dispõe sobre unidades móveis de saúde, como insiste em afirmar a agência durante a revisão da norma sanitária.

 


Figura 3 – Card, revisão da norma RDC 50/2002. Fonte: ANVISA

Tanto nas unidades criadas itinerantes e temporárias quanto nas unidades permanentes e existentes, ficaram explícitos os problemas estruturais, nesse momento tomando o papel de protagonismo as “instalações de sistemas de climatização”, onde muitos setores de diversos estabelecimentos de saúde necessitam de sistemas que propiciem a renovação de ar, filtragem High Efficiency Particulate Arrestance – HEPA (filtragem com detecção de partículas com alta eficiência) e pressão positiva ou negativa, itens considerados como uma verdadeira “utopia” para a realidade das unidades do SUS.

 

Outra grande lição que precisa ser aprendida dentro do cenário vivido é a “confusão de conceitos” ora relacionada à função, ora relacionada ao grau de resolutividade técnica dos EAS. Um exemplo foi a fala indiscriminada da existência de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em hospitais de campanha ou em Unidades de Pronto Atendimento – UPA 24 horas. Claro que numa situação de caos precisa-se encontrar um norte, mas também é preciso que esse norte realmente direcione para um caminho resolutivo e coerente. Toda a tecnologia pode ser implantada a fim de ser elaborado um leito de UTI contando com dimensões e sistemas como o de gases medicinais, elétrica (de abastecimento e de emergência) e o sistema IT-Médico, condizentes com os leitos de UTI dos hospitais existentes e permanentes. Mesmo assim dificilmente teremos um setor de UTI com todas as necessidades sistêmicas implantadas em tais unidades, principalmente devido a esse paciente necessitar a qualquer momento de acesso a serviços não ofertados a beira-leito, e sim em setores anexos como num centro cirúrgico (por exemplo). Além do mais importante, uma equipe profissional multidisciplinar, treinada e entrosada, que responde por uma dezena de linhas de cuidados e que precisa estar pronta para agir. Assim, afirmar a existência de tal unidade funcional (UTI) é afirmar que qualquer paciente da rede (crítico) poderá ser admitido para que um diagnóstico e terapia o sejam possibilitados, isso por uma longa permanência – é admitir por exemplo uma gestante de alto risco com a COVID-19, o que poderá trazer sérios riscos a esse perfil de paciente.

Preocupação por tal ponto não faz referência ao cumprimento da letra fria de normas sanitárias, mas sim ao princípio de razoabilidade relacionado à própria segurança do paciente, como cita o Dr. Welfane Cordeiro (hospital Sírio-Libanês), “essas unidades de campanha servem apenas para proteger o hospital permanente de média e alta complexidade, esse sim está apto a tratar do paciente crítico”.

Outra estratégia, essa lançada pelo Ministério da Saúde para aumentar a possibilidade de acesso da população a internação, com um olhar progressivo ao atendimento, foi a criação dos leitos de Suporte Ventilatório Pulmonar (LSVP), que se caracteriza com nível de resolutividade entre o leito clínico e o leito de UTI, no que se refere ao espaço, equipe e equipamento (3 E’s), alinhado a uma fala técnica com a ANVISA, que definiu as suas características de infraestrutura. Essa estratégia faz referência aos leitos de cuidados intermediários existentes principalmente na rede suplementar e que há muitos anos não possui definições em relação às suas características.

Esse momento irá passar, e quando acontecer, que os holofotes voltados durante a pandemia para as deficiências da tão necessária (e, ao mesmo tempo comprimida) infraestrutura da rede de saúde no país, principalmente a do SUS, não sejam apagados. Para tal, atos normativos que induzam a reestruturação da rede de uma maneira responsável precisam ser criados ou revisados.
Um bom exemplo é a aplicação do programa “Hospitais Seguros”, onde o Brasil firmou compromisso junto a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em 2010 para a criação de manuais de orientação sobre o tema, porém até agora pouco se fez. Quem sabe incluindo tal premissa como uma ferramenta necessária para habilitar e qualificar novas unidades de saúde dentro das políticas de assistência do Ministério da Saúde.

Também será crucial rever a proposta da norma RDC nº50/2002 ANVISA (que acabou de sair do processo de consulta pública), uma vez que ficou claro que o seu escopo trata de unidades de saúde permanentes e existentes na rede e não de unidades itinerantes e temporárias, e assim criar uma norma de boas práticas para unidades móveis e demais temporárias como os hospitais de campanha, acabando com a histórica vacância normativa sobre essas unidades. Isso poderia resolver uma possível distorção na revisão de tão importante ato normativo, que sequer foi concluída. Já o texto da atual norma posto em revisão, mesmo tendo o seu foco voltado para a avaliação dos consultores das Vigilâncias Sanitárias (VISA), não pode esquecer dos demais atores que a utilizam, incluindo o projetista, uma vez que o seu título cita “planejamento, programação, elaboração”. Portanto, precisa sim olhar para questões voltadas a qualidade dos ambientes internos, essa relacionada por exemplo ao conforto higrotérmico. Caso contrário, que os órgãos responsáveis criem manuais de orientação complementares e os disponibilizem à sociedade, como a atualização do Sistema de Apoio à Elaboração de Projetos de Investimentos em Saúde (SOMASUS) do Ministério da Saúde, já que uma série de normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) não é aberta ao acesso do público.

Sobre o mesmo tema e de maneira complementar também será de suma importância voltar a instituir o Conselho Nacional de Biossegurança (criado em 2002), com a finalidade de reativar a discussão sobre uma norma que venha a tratar de uma classificação do risco sanitário para EAS.
O Censo Médico-Sanitário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que teve a sua última atualização em 2009, foi reativado e segue em processo de atualização. Esse é mais um documento que pode e deve contribuir para que tenhamos um diagnóstico da real situação das unidades hospitalares e não hospitalares no país e deve ser concluído o quanto antes.

No mais, apostar na manutenção e no aperfeiçoamento da normatização de inclusão dos leitos de Suporte Ventilatório Pulmonar, quem sabe migrando e adaptando o seu conceito (o tornando mais generalista) no pós-pandemia, para que ele assuma a sua real e permanente função na rede de saúde: o leito de cuidados intermediários, que possui os “3 E’s distintos tanto do leito clínico de enfermaria quanto do leito de UTI. A manutenção do leito de cuidados intermediários preencheria lacunas com a inserção nas unidades de internação assumindo o papel de leito de semi-intensiva, e nos Pronto Atendimentos (P.A.) assumindo a função de um leito de urgência, uma vez que hoje temos apenas leitos para salas de emergência, contribuindo com a estruturação de um espaço adequado para o paciente que se encontra num quadro clínico entre o moderado e o crítico.

Outra linha de ação é aproveitar o legado dos assertivos estudos de orientações lançados pela equipe técnica da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) nos seus manuais, que visam aproveitar e reaproveitar “o que existe” na rede dos seus hospitais, e também os fluxos desenvolvidos pelas equipes do Ministério da Saúde, tanto os que envolvem o manejo clínico como os direcionados para a infraestrutura.

 

Figura 4 – Nota Técnica nº6/2020 EBSERH. Fonte: EBSERH

Quem sabe é sonhar muito em ver publicada uma norma, como temos a norma de desempenho de edificações habitacionais – ABNT NBR 15575:2013, numa versão voltada para as unidades de saúde.
Enfim, existe muito a se fazer, e como cita o presente texto, caminhos não faltam. Que os atos normativos se adequem ao tão chamado “novo normal”, e que os responsáveis pelas atualizações tenham ainda mais empatia aos pacientes e profissionais de saúde. Para o caso específico proporcionado pela pandemia que segue a atingir o mundo, que o governo possa constituir um instrumento complementar ao decreto de emergência, podendo fazer um recorte no princípio concorrente das normatizações de saúde no país (citada na nossa Constituição), para que, num estado de calamidade, possa atuar de maneira plena no direcionamento dos principais comandos, assim “virando a chave” da medicina de rotina para a medicina de vítimas em massa, como já acontece em boa parte dos países europeus.

 

REFERÊNCIAS
Ministério da Saúde. https://coronavirus.saude.gov.br/profissional-gestor#publitecnicas
Agência Nacional de Vigilância Sanitária. http://portal.anvisa.gov.br/coronavirus
Empresa Brasileira de Hospitais. https://www.gov.br/ebserh/pt-br
World Health Organization. https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019
Organização Pan-Americana de Saúde. https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=1232:reuniao-discute-hospitais-seguros-e-ajuda-humanitaria-internacional&Itemid=839


Sobre Thiago Mendonça de Souza Almeida
Graduado em Arquitetura e Urbanismo (Universidade Federal de Alagoas-UFAL, 2006), especializado em Arquitetura de Saúde pelo INBEC. Um dos arquitetos titulares do escritório Arquitethos (Maceió) com ênfase em arquitetura corporativa e institucional (entre 2006 e 2017). Fez parte do quadro de arquitetos da Protécnica Arquitetura e Engenharia Hospitalar (Maceió – Salvador) entre 2008 e 2016. Tem experiência na área de arquitetura de saúde, tanto na esfera privada quanto na gestão pública. Dentre os principais projetos que participou, destaque para alguns como o Complexo Médico Delfin (CMD) em Lauro de Freitas-BA; Hospital Aeroporto (reforma) em Salvador e o Centro de Nefrologia – Santa Casa de Misericórdia de Maceió. Atualmente exercendo o cargo de arquiteto de saúde no setor de Urgência – CGURG/DAHU/SAES do Ministério da Saúde, Brasília-DF. Além de participar da equipe técnica que responde pela política macro de urgência no país, contribuiu com participações em trabalhos transversais junto ao Ministério da Saúde, dentre esses: compondo o Grupo de Trabalho (GT) de Coordenação de Revisão da Norma RDC nº50/2002 ANVISA sendo um dos representantes do Ministério da Saúde junto a Agência; compondo o Grupo de Trabalho (GT) de elaboração de critérios para implantação de hospitais de campanha federais no enfrentamento a pandemia da COVID-19 – Casa Civil da Presidência da República; participando da equipe técnica DAHU/SAES/MS responsável pela elaboração do Leito de Suporte Ventilatório Pulmonar – LSVP no enfrentamento a pandemia da COVID-19; contribuição técnica na atualização do Censo Médico Sanitário IBGE, versão 2020.
Instagram: @thiagomendonca.arq




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